quinta-feira, 17 de abril de 2014

SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?


Este anos de luta pelas crianças-sem-família têm me ensinado bastante sobre as instituições competentes para garantir sua convivência familiar, sobretudo a Magistratura e o Ministério Público. Sendo um integrante de uma delas, há mais de vinte anos, seria presumível, ao olhar leigo, que eu tivesse um profundo conhecimento sobre suas estruturas e funcionamento. Confesso que cheguei a pensar, há algum tempo, que realmente as conhecia, através de meu olhar interno, imiscuído na praxe de alguma Promotoria de Justiça, tomando tolamente o todo pela parte. Vejo agora, decorridos tantos anos, que eu me comportava com a autoconfiança de um menino que, orgulhoso, afirma peremptoriamente conhecer o mar após o primeiro mergulho da sua vida.
Neste tema específico, crianças-sem-família, abarrotando anonimamente as instituições Brasil afora, em função de uma experiência familiar extraordinária surgiu a oportunidade de uma outra visão destas Instituições: a visão de quem está de fora. Somando-se esta nova perspectiva à minha antiga concepção, percebi que eu realmente precisava reorganizar meus conceitos sobre o desempenho do Ministério Público e da Magistratura na área da Infância, além de intuir que nas demais áreas jurídicas poderia acontecer o mesmo fenômeno.
O fato concreto é que a simples existência de milhares de crianças passando anos em instituições já indicia que há algo a ser aprimorado no sistema jurídico de proteção da infância. É um recibo eloquente da incapacidade que o Ministério Público e a Magistratura adquiriram ao se acomodarem em práticas auto-protecionistas, demagógicas, autoritárias. Cada uma destas espécies de práticas nocivas se escora numa determinada ideologia que pretende justificá-la ou legitimá-la.
Nesse sentido, o auto-protecionismo se verifica quando a praxe política das Instituições, sob o pretexto de defender as prerrogativas de seus membros, acaba por acobertar atos de desídia, incompetência e desonestidade por parte de alguns de seus integrantes. O surgimento dos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público foi necessário em função desta tendência: a falta da capacidade interna de se expurgar o mal, com rapidez e eficiência.
Em relação à demagogia, é um inimigo mais insidioso: na área da infância formou-se uma gestapo ideológica que sob o pretexto de defender o pobre, acaba por idealizar a pobreza como justificativa para qualquer ação ou omissão humana, inclusive para manter crianças vinculadas juridicamente a famílias que não as amam ou protegem. É como se, para uma criança viver em uma instituição não fosse uma aberração, um crime contra ela, um avilte à sua dignidade de pessoa humana.
Por fim, a prática autoritária: as Instituições não estão preparadas para uma palavra crítica. Não raramente há retaliações a seus detratores, com representações, investigações e artifícios punitivos apenas em função de uma apresentação em encontros e congressos que pretendem justamente refletir as práticas processuais que são impeditivas de que a criança tenha uma solução adequada para sua vida. É a cultura do “SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?”, tão comum nas ditaduras, e tão patética em tempos do Estado de Direito.
Sempre que nos manifestamos assim corremos o risco das generalizações. O Ministério Público e a Magistratura estão repletos de gente séria e trabalhadora. O que aqui se faz, com sinceridade e pureza de espírito, é convocar estas pessoas para que se somem a este dever cívico de fazer estas Instituições plenamente republicanas e democráticas. Mais que isso, é asseverar que enquanto não nos desnudarmos das nossas excelências e nos identificarmos completamente com a nossa vocação estaremos alimentando tudo aquilo que abominamos.
Sávio Bittencourt

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